💖Uma Página de Minha História - GABRIELE LUISA MENEGATTI MAZZUCHIN


Então a história que eu vou lhes contar hoje é uma história de vida. A história da minha vida, hoje sou uma senhora de 70 anos, de sorriso aberto, de amizade fácil, e de sentimento sincero, com algumas rugas no rosto que o tempo e as batalhas trouxeram. Mas quem vê essa face hoje não imagina quantas lágrimas já rolaram no meu rosto, quantas risadas, quantas tristezas, quantos pensamentos, quantas decisões a serem tomadas, quanto suor, enfim... 
Tudo começou quando eu nasci e me criei no interior, eu e meus irmãos. Éramos em seis, eu era a única menina e era a caçula. Me lembro até hoje da minha mãe,uma senhora vaidosa, caprichosa, usando um belo vestido rodado de poá, lembro do meu pai, um  senhor enérgico, de cara amarrada, e de sorriso quase nunca, que falava grosso, tinha um andar firme. Naquela época se respeitavam os pais, éramos os últimos a falar e o que eles diziam era lei.
            O dia começava cedo lá, bem cedo, antes mesmo de o dia clarear, lembro-me que eu era acordada pelo cheirinho da polenta que havia restado da janta da noite anterior, sendo sapecada na chapa do fogão a lenha, o cheirinho do café passado que minha mãe fazia, aquele café gostoso, fumaçando, aquele aroma que exalava na casa toda, em um coador de pano e uma chaleira de ferro que tenho até hoje, e guardo-a como relíquia de um tempo que se foi, que não volta mais...Uma chaleira velha mas lustra brilhante muito bem esfregada, minha mãe apreciava muito essas coisas,seu lema era:simplicidade mas capricho acima de tudo. Lembro-me também que a casa tinha um chão de madeira: eram tábuas largas e no final de semana era o dia de esfregar as tábuas de escova e joelho no chão, pegávamos água da sanguinha que cortava o nosso terreiro, eu puxava no balde e eu e minha mãe esfregávamos até ficar bem branquinhas. 
Ah eu me lembro bem desse cheirinho de casa limpa e aquelas tábuas branquinhas com  sol batendo até secar!
            A família trabalhava na roça meus irmãos e meus pais iam cedinho para a lida no campo. Nesta época, que retrato de agora eu tinha nove anos de idade, eu ficava em casa com o compromisso de colocar lenha no fogo e não deixa-lo morrer. Eu ficava em casa fazendo as coisas da casa e do terreiro, a comida era iniciada por mim, e quando todos chegavam da roça, inclusive minha mãe, era ela que assumia e finalizava o almoço...
            Porém, infelizmente essas lembranças não são muitas, me lembro de poucos dias assim com a minha mãe, infelizmente numa tarde que teria tudo para ser normal, na hora do almoço enquanto o meu pai descansava para voltar para a roça minha mãe lavava roupas numa sanguinha que tinha no quintal da casa, aquela mesma em que nós pegávamos água para lavar as tábuas do chão da casa... Ninguém sabe exatamente o porque, mas aquele dia ela se sentiu mal e caiu dentro desse rio morrendo afogada, foi um dos piores dias da minha vida, lembro-me que minha mãe nesse dia havia amassado o pão para fazer para família.    
    Éramos em vários, a família era grande então ela fazia para a semana, naquele dia tenebroso os adultos começaram a correr e chamar ajuda então se apavoraram com o que havia acontecido e eu estava ali parada olhando tudo aquilo!
Me desesperei, eu e o meu irmão  maior, saímos correndo e fomos para dentro de casa num lugar onde hoje em dia não se fala mais, não existe mais. O lugar era chamado de sobrado, me lembro que o meu irmão que era um pouco maior que eu  e entendia um pouco mais da vida, ele pegou uma ferramenta que tinha ali chamado arco de pua; é (utilizado para fazer buracos, furos em madeira). Ele usou essa ferramenta para fazer um buraco no forro do quarto da minha mãe e ver o que estava acontecendo.
 Ali o meu pai havia recolhido o corpo da minha mãe e levado para dentro de casa e deitado ela na cama. Eu olhei por esse buraco que meu irmão fez e vi minha mãe molhada, fria, pálida, nesse meio tempo eu me lembrei que o pão que minha mãe havia amassado, cilindrado e enformado estava tão crescido que já transbordara por cima das formas e ela não estava ali para levarmos para o forno de barro que ficava no nosso terreiro. Foram as vizinhas que vieram e acabaram assando os pães que por sinal ficaram rolando por muito tempo e ninguém tinha coragem de come-los. Naquele dia me senti sozinha, sem ter o apoio e o amparo da única pessoa que era minha companheira diária, ela já não falava mais, não podia me olhar, nem me proteger, não me consolava.
 Eu havia perdido minha mãe, e percebi que daquele dia em diante eu estaria sozinha, meus irmãos eram homens e iam para lida dura na lavoura. Então com nove anos de idade apenas tive que tomar a frente da casa e assumir as tarefas de uma mulher, os dias eram duros, eram difíceis, se trabalhava muito com apenas nove anos de idade assumi responsabilidades. Serviços que hoje certamente seriam tarefas para qualquer adulto, hoje seria considerado trabalho infantil ou quem sabe trabalho escravo até, mas naquela época era tarefa que misturava prazer por eu estar fazendo para minha família, e dor, porque eu sabia que estava fazendo o serviço que era da mulher que eu mais amava e que já não estava mais ali.
            Meu pai era uma pessoa ruim, eu me lembro, ele era muito mau com minha mãe, ele brigava com ela por ciúmes, ela era uma mulher bonita, charmosa, elegante, vaidosa. Eu me lembro que numa manhã minha mãe amanheceu com cortes nos pés e eu perguntei para ela o que havia acontecido, ela me falou que o pai tinha brigado com ela durante a noite falando que queria matá-la, então ela correu e se escondeu dele em um buraco feito para jogar vidros (já que não havia lixeiro para fazer a coleta dos materiais cortantes, eles ficavam depositados ali em um buraco no chão) e num ato de desespero ela se jogou lá dentro na tentativa de se esconder dele. Então por situações como estas eu tenho uma dúvida que me assombra até hoje: a minha mãezinha, realmente perdeu a vida por uma fatalidade como ele nos contou? Ou ele tirou a vida dela num ato de crueldade e covardia?
            Essa dúvida não é era só minha, essa dúvida era também dos meus irmãos, eu nunca falei nada pra ele, mas meus irmãos homens e mais velhos, enfrentavam ele de alguma forma e isso causou um sentimento de negação no meu pai, que acabou deserdando meu irmão mais velho, e ignorando meu irmão mais novo.
O tempo foi passando e cada um foi seguindo seu caminho, formando famílias, meu pai então resolveu vir para a cidade tentar a vida aqui em Concórdia. Ele saiu do interior, nessa época meu irmão mais velho já havia se casado, e o último dos meninos (o mais novo deles, porém nascido antes de mim), foi rejeitado pelo meu pai, e até hoje não sei o porquê, e nessa mudança que meu pai fez para a cidade ele não aceitou que ele viesse conosco. Eu me lembro então do caminhão carregado com nossa mudança deixando tudo para trás, a casa, nosso quintal, nossas lembranças de lá ,inclusive do meu irmão abandonado por ele que ficou olhando pela janela da casa o caminhão ir embora e eu também fiquei olhando para ele, mas não podia fazer nada eu era criança e só obedecia meu pai.
            Esse meu irmão acabou tentando a vida em uma outra cidade próxima, trabalhando como eletricista.
Certo dia ele sofreu um acidente de trabalho, e então voltou para casa, para nossa casa, porém dentro de um caixão! Morto! Foi uma cena que ficou na minha memória foi ver meu pai indo receber o meu irmão, mas não era num abraço acolhedor, era num caixão empoeirado da estrada, e então antes dele acariciar o rosto do filho deixado para trás, esfregou a mão na tampa do caixão para tirar o pó da estrada.
 O tempo foi passando, meu pai acabou conhecendo outra mulher, que entrou nas nossas vidas trazendo apenas mais dores, a gente não aceitava essa mulher tomando o espaço que era da minha mãe, usando as coisas dela, usufruindo dos frutos conquistados pelo suor dela, então a família se desfez de vez.
 Cada um dos meus irmãos foi para um lado, meu pai teve outros filhos com a nova esposa, fez uma nova história, eu então acabei saindo de casa e trabalhando como empregada doméstica. Tive três filhos, todos criados com o dinheiro que eu conquistei fazendo faxinas. Ai finalmente inicia-se uma nova página da minha história.
 Porém a mais marcante, a que mais machuca meu coração, que mais assombra meus pensamentos, a que causa insônia e é motivo de emoção até hoje, foi a que decidi compartilhar com vocês.



Aluna: GABRIELE LUISA MENEGATTI MAZZUCHIN
Escola Básica Municipal Giuseppe Sette
*Texto Vencedor da fase 1 da Olimpíada Portuguesa de Língua Portuguesa - 2019
na categoria Memórias Literárias. 


      

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